Resenha: Do Incisivo ao Canino – Bert Jr.

“O inferno são os outros, disse Sartre. Não raro somos o outro de nós mesmos, digo eu.” (Bert Jr.)

Foi com esta frase de abertura de seu livro Do Incisivo ao Canino, que o autor Bert Jr. despertou minha curiosidade antes mesmo de ler qualquer uma de suas narrativas. A obra é composta por 13 contos de temas distintos que corroboram a citação acima.

SINOPSE:
A narrativa vai do incisivo ao canino nestas estórias de umas & outros, em que o tema da alteridade se faz central. O autor usa diferentes dosagens de humor para abordar o complicado das relações interpessoais. As estórias podem exalar uma atmosfera onírica, como em Alma e Outros, ou incluir pinceladas de mistério, como em Tutua e Zunzum quântico. Em Justina, um improvável e sombrio erotismo emerge da relação entre um jovem executivo e sua empregada doméstica. Tintas de horror assinalam o conto A sombra. Já em Cães da praia vemos um policial aposentado converter-se em matador de cães: seria essa uma forma de sociopatia? As tensões subjacentes à vida matrimonial eclodem de forma imprevisível em Autoral e Entre dentes. Em Programa alimentar e Ana Lógica entram em cena assimetrias de poder e reviravoltas no jogo da sedução, enquanto em Parisiense uma anciã com Alzheimer vagueia pelas ruas de um bairro afluente de São Paulo, guiada por tênues reminiscências.

Por fim, Perfil nos traz o breve relato de um amor moderno, eivado de virtualidade. Em síntese, o leitor encontrará um quadro inquietante e plural de algumas das questões envolvendo a ética dos relacionamentos na sociedade contemporânea.

Bert. Jr é um autor avesso as amarras sociais e adepto da liberdade de expressão, focada na criatividade e diversidade de temas. Através de uma  escrita que transpira desprendimento, ele conduz o leitor com maestria do amor ao ódio. Sua qualidade textual não busca admiração ou aceitação, tocar os leitores com os mais diversos sentimentos, sejam estes bons ou ruins, parece ser o objetivo final de seus contos.

Artista da palavra, é a melhor definição para um autor que escreve narrativas que transitam entre o humor, o erotismo, o horror, a linguagem lírica, o universo onírico, o amor, a inveja e até o abominável, caso ,por exemplo, de Cães da praia, um conto capaz de despertar asco em qualquer pessoa que tenha carinho por estes seres tão especiais que são os animais. 

” O que precedeu aquele instante perdia o interesse, talvez para sempre, e ali fiquei, extático, sentindo o fluxo das coisas que se desprendem no curso de nosso próprio mistério. Torne-me síntese de mim mesmo. Enraizei-me no átimo.” (pág. 15 – citação do conto Alma)

Os contos que mais apreciei foram:

Autoral: um marido começa a se incomodar com seu casamento perfeito, após os amigos definirem sua esposa impecável, como alguém que “não é deste mundo”. Assim, o  desassossego que o invade toma proporções tão extremas, que apenas um final inesperado e trágico parece ser apropriado.

“O amor, segundo dizem, é achar que a companhia do outro vale o trabalho de aparar os espinhos para que não firam o parceiro. Só que, com Cibeibe, não havia o que aparar. Ele não conseguia detectar defeitos nela. Tudo o que ela fazia produzia algum tipo de conforto em seu favor. Então, o que havia para criticar?” (pág. 11 – citação do conto Autoral)

Ana Lógica: através da lógica e da inteligência, uma estudante se defende e humilha merecidamente, um professor orientador de teses, que costumava usar seu poder para assediar ou conseguir favores sexuais de suas alunas. 

Parisiense: acompanhamos as desventuras de uma senhora com Alzheimer, que tenta achar uma unidade dos Correios, com o intuito de enviar uma carta para sua sobrinha. Seu delicado estado de saúde mental, apenas é revelado próximo ao final do conto e de forma tão delicada e respeitosa, que é impossível não se emocionar.

Enfim, o livro é uma leitura surpreendente que flui prazerosamente e vale muito a pena conhecer!